Por Sara Teotónio Dinis
Vêem-me sem bata e dão-me dezoito anos. Visto a dita e espantam-se quando alguém lhes diz que sou «doutora»:
— Já é doutora? Tão novinha?! Ai, Deus nos valha!…
Novinha e bem tenrinha era eu quando respondi «médica» pela primeira vez à pergunta da praxe:
— O que queres ser, quando fores grande?
(Agora já sou médica, mas ainda não sou grande…)
O meu crescimento e desenvolvimento infantis foram testemunhados pelos meus médicos de família, pediatra e alergologista. O consultório não me afligia, não chorava horrores com a bata branca, e tinha até algum interesse curioso naquela panóplia de instrumentos estranhos, feitos de tubos e luzes, que o senhor doutor usava para perscrutar os mistérios dos meus orifícios cranianos, ou ouvir as minhas entranhas palpitantes.
Não sei quem premiu o gatilho, nem tão pouco com que arma, e me apontou, primeiro à cabeça, e mais tarde ao coração, disparando aquela ideia, enterrando em mim aquela noção… aquele sentir.
— Quero ser médica.
Ainda hoje não sei. Mas, do alto dos meus seis anos, eu disse-o ao professor Ramiro, na primeira classe, numa aula de partilha dos nossos elaboradíssimos planos para o futuro.
De meninos passámos a adolescentes inconsequentes, e o mais natural é que as nossas primeiras ideias profissionais passem de vitais a ridículas, e se alterem mil vezes consoante as nossas vivências e o nosso crescimento intelectual. Não foi o meu caso. À semelhança de alguns colegas que conheço de perto, poder-se-ia achar que «ir para médica» seria uma escolha meramente lógica dado o meu óptimo aproveitamento escolar. Não foi o meu caso — eu gostava de estudar, imagine-se…
A ideia estava perfeitamente enraizada e cresceu exponencialmente com o despertar psicológico adolescente, que subitamente, do alto dos seus quinze anos, descobre que está numa coisa chamada mundo, que é habitada por sete mil milhões de pessoas, na qual é muito difícil sobreviver — dado que foi desenhada com o defeito humano de que, para tal, é preciso ganhar muito dinheiro — e, como tal, o mundo está mais preocupado com isso do que com as suas borbulhas e os seus desamores. Eu achava, assim, que ser médica fazia cada vez mais sentido e sentia aquela vontade ingénua de ajudar toda a gente, dar-me bem com toda a gente e mudar o mundo terrível em que vivia! E com essa meta segui eu, calças de ganga e mochila às costas, sapatilhas ruças, olhar perdido no chão e rinite matinal, durante todo o Secundário, sempre muito concentrada nos trabalhos, nos testes e na minha média.
E, sem me adiantar muito mais, chegou Setembro de 2006. E em mais seis parágrafos se poderão um dia contar seis anos de curso em Coimbra — certamente o farei aqui, um dia.
Hoje, sou médica e já não sou ingénua. Sei que não vou mudar todo o mundo — vou, talvez, ajudar a mudar um bocadinho o mundo de alguém, se alguém assim o quiser. Continuo a usar calças de ganga e sapatilhas, mas o olhar não anda perdido — sabe bem o que procurar, onde e em quem procurar — e seguramente não foge a esconder-se no chão que piso.
A Medicina é o que sempre quis. É um sentir, e é um traço. É a arte onde escolhi sacrificar os meus neurónios, ontem, hoje e amanhã. É o que faço já, e que continuarei a fazer mesmo depois de me reformar. É uma má notícia com grande potencial de recuperação, e uma má notícia que piorará e temos de ensinar a aceitar. É uma lição de vida por dia. É uma alegria que ajudamos a acontecer. É uma tristeza que também sentimos quando vemos o outro partir. E, por tudo isto, é também uma grande oportunidade de aprender a bem viver.
Visto a bata. Novinha e bem tenrinha, assim vou eu, a caminho do consultório.
10 comentários a “Eu, médica, me acuso”
Muito bem-vinda, Sara! Que grande começo!
Muito obrigada, Hugo! 🙂
É um prazer partilhar este espaço convosco. 🙂
Espero não desiludir.
Beijinho*
Sabes, Sara, a minha história é parecida com a tua. Com a diferença que eu acabei por mudar a agulha no quinto ano do curso. Mas cada um deve fazer aquilo em que se sente melhor, não é?
Sempre, Gus. Sempre devemos fazer o que sentimos ser melhor, dentro do possível… sempre devemos ser fiéis a nós próprios, antes de sermos fiéis a mais alguém. E para rematar cito Saramago – “sempre chegamos aonde nos esperam” 🙂
Beijinho*
Desejos de muita sorte neste percurso de felicidade para ti. O empenho de anos traz-te agora aquilo que ambicionavas. Dizer amor à profissão seria banal, eu acho que é dar vida ao próprio corpo, porque podes contribuir para o bem estar do próximo de uma forma mais directa. E isto, é insaciável 🙂
Bom texto Sara. Ganha-se uma jovem, e de certeza boa médica. Perde-se uma boa escritora cronista ou contadora de histórias.
Força Sara! Quero ver mais crónicas tuas 😉
É a Sara e o Narciso. Balelas.
[…] sou um recurso» («O muro das lamentações»); «Tantos que somos…»(«Olho clínico»); «Eu, médica, me acuso»(«Olho clínico»); «A isenção de IVA nos serviços de saúde» («Docendo discimus»); […]
[…] há um ano [1] que a coluna Olho Clínico começou a marcar a sua presença semanal aqui na Rua. Tem sido um […]