Por Sara Teotónio Dinis
Prólogo
Ao médico ou estudante de Medicina se coloca a questão. Qual é a razão de ser da Medicina? A resposta é rápida… mas terá sido a correcta? O médico/estudante respondeu «as doenças»? Ou respondeu «os doentes»?
Nas palavras de João Sequeira Carlos, «o sofrimento ultrapassa sempre o âmbito pessoal». Os motivos de consulta são habitualmente múltiplos e não são só de tipo biológico. E porquê? Porque as pessoas vivem num sistema social; independentemente de terem ou não uma família, não são sós, e foram outrora educados numa, carregando as vivências para sempre consigo.
Como já aqui referi ao de leve, no plano curricular do curso de Medicina há várias lacunas [1]. Uma delas é a falta de formação específica em matérias como a Sociologia e a Psicologia [2], que nos permitiriam desenvolver melhor o entendimento do outro e a comunicação com ele. Estas disciplinas ensinam-nos, entre outras coisas, a procurar e saber ver os sintomas ou sinais dos problemas da mente e da alma. Como escreveu Luís Rebelo, «sabemos que o corpo e a mente são um todo, mas temos dificuldade em pensar a pessoa como una e total», em grande parte porque fomos ensinados a procurar somente o que o corpo nos diz — quando o vemos, ouvimos, palpamos e percutimos — ou nos revela — numa panóplia vasta de exames auxiliares de diagnóstico. Mas há muito em nós que não se consegue objectivar em nenhuma das acções anteriores.
Passou-me hoje pelas mãos o exemplo da importância destes conceitos, que nos parecem sempre muito abstractos. Foi um senhor diabético tipo II, hemoglobina glicada de 10%, glicémia ocasional 190mg/dL, colesterol total de 270mg/dL, 350mg/dL de triglicerídeos, obesidade grau I. Perguntei-lhe o que tomava ele para a diabetes. Disse-me que fazia a insulina e um comprimido. Depois de me ter dito qual era a insulina, perguntei-lhe quantas unidades é que andava a fazer. Respondeu «nenhuma».
— Como?
— Nenhuma. Não tenho feito, doutora! Pronto! Não lhe vou mentir que não vale a pena… Não tenho feito, já não faço a insulina há pelo menos uns dois meses.
— Como?! Então porquê?
— Ah! Olhe, porque me passa! Esqueço-me… E depois não faço mesmo!
— Nem uma vez por dia? Então e quando se lembra, ou se apercebe que esqueceu, não faz à mesma?
— Não. Que quer que lhe diga?…
Por dentro, pensei: «mais um não cumpridor… que irresponsabilidade…» E, nos minutos seguintes, cumpri o meu papel e «eduquei para a saúde» — ressalvei a importância do cumprimento terapêutico, revi os hábitos alimentares saudáveis, insisti no exercício físico (pelo menos na caminhada de trinta minutos cinco vezes por semana), expliquei as complicações macro e microvasculares da diabetes e da dislipidémia…
No final da consulta, depois de o senhor ter saído, a minha orientadora acrescentou uma condicionante importantíssima para a compreensão da situação em causa:
— Sabes, Sara, lá em casa dele passam dificuldades… Ele já há um ano tinha deixado de cumprir com a medicação porque não tinha como pagar os medicamentos. Estava desempregado e com dívidas, e tem filhos menores.
Corei. «Perguntaste, Sara? Desconfiaste sequer?» Não. «Toma lá e aprende.»
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[…] – Toma lá e aprende [3]. […]